Arquivo do mês: junho 2013

A escalada

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Eu moro na França. E aqui na França as pessoas tem o costume de fazer uma coisa chamada randonnée. Quando eu estudei um pouco de Francês no Brasil, a professora explicou que randonnée significava caminhar no mato. Achei ótimo.

Acontece que não é bem assim. Randonnée é fazer trilha. E é trilha pesada. Até aí, tudo bem. Acontece que eles gostam de subir e descer montanhas bem íngremes e gostam de ficar dias nisso (sem tomar banho nem nada). À parte da esfera higiênica e saudável do programa, eu tenho tido muita dificuldade, por uma simples razão: não tenho preparo físico para acompanhar os europeus nessa.

Aí surgem mil conjecturas: talvez eu seja preguiçosa demais, talvez eu tenha me alimentado erroneamente para a atividade, talvez eu tenha mais idade do que penso ter e assim por diante. Eu concordo com tudo isso. Mas lendo sobre a movimentação que tem acontecido no meu Brasil esses dias, me lembrei de alguns fatores.

Quando eu era pequena, adorava programas ao ar livre, principalmente com mais cara de aventura. Naquela época, minha mãe me levava para muitos parques, montanhas etc próximos a Belo Horizonte. A gente frequentava muito o Parque das Mangabeiras, onde passávamos o dia inteiro andando com amigos, observando insetos e fazendo pique-nique. Um dia, eu estava lá com amigas, entrei no banheiro e uma gangue entrou atrás exigindo dinheiro e nos intimidando. Conseguimos sair correndo, mas foi um sufoco. Procuramos informações e descobrimos que o parque estava sendo atacado por criminosos e que muitos dos que o frequentavam tinham sido assaltados. Paramos de frequentar.

Aí eu passei a frequentar o Minas, um clube de Belo Horizonte, que tem piscinas gostosas. E eu adoro nadar. Só que tinha um problema: Era difícil achar vaga para o carro lá. E se não pagasse adiantado o flanelinha, corria o risco de sempre: ter o carro riscado. Passamos a colocar o carro numa parte mais alta do bairro. Porque, né, para ir de ônibus, demorava duas horas. Estávamos satisfeitos, até que um dia, os moradores dessa parte (que se chama Clube dos Caçadores) decidiram fechar a rua. Sim! Eles fecharam a rua. Fizeram daquela parte um condomínio fechado de riquinhos, e mesmo perdendo na justiça o direito de fazer essa aberração, eles mantiveram fechado, como se fosse normal. Liguei pro Minas e pedi explicações. Eles não souberam se posicionar. Parecia que tinham medo ou “rabo preso” com aquele povo.

Parei de frequentar o Minas.

Mas tem tanta opção de esporte ao ar livre no Brasil, que isso nem é problema. Um belo dia fui para a Serra do Cipó com minha família. Uma maravilha da minha região. Nadei na cachoeira com meus primos, tias e até minha falecida avó. Tomei suco natural, comi melancia e caminhei pela mata.  Era perfeito! Uma semana depois, eu estava com dengue. Uma dengue horrível, que quase me levou. Parei de ir para a Serra do Cipó. E pelo mesmo motivo também passei a evitar a região da Pampulha e todas as partes de Minas que tem lagos, lagoas. Dengue é a maior epidemia de Belo Horizonte, talvez comparada apenas com a leishmaniose, outra praga trazida pelo mosquito que nosso governo (e também nosso povo) não consegue deter.

E, aos poucos, fui perdendo escolhas para fazer o que amava. Mas nada é desculpa para parar de fazer esportes. Nada é. Quando a gente quer, escada do prédio vira academia. Nem discuto isso.

Neste momento, o que me ocorre é pensar que, na minha cidade, fui perdendo meu direito de ir e vir meio sem perceber. Com tanto trabalho, tanto problema, a gente nem pensa também que nossa vida vai ficando extremamente limitada. Como se fosse normal. Como se fosse normal não poder frequentar um parque por causa da delinquência do lugar, como se fosse normal um mosquito poder ganhar de toda uma população, como se fosse normal meia dúzia de milionários fecharem uma parte da cidade para eles.

Eu entendo muito bem essas manifestações que tem ocorrido no Brasil. E entendo também que ainda não tenham um discurso completamente fechado porque é tanta coisa indignante que a gente precisa sentar para saber por onde começar: Saúde? Educação? Segurança?

A gente não tem o mínimo, num Brasil que está produzindo o máximo.

E, daqui da França, eu vejo como é salutar querer mudar tudo. De forma pacífica, mas muito movimentada. Decretar um estado de sítio, porque está TUDO errado. Recomeçar. Temos que escrever e ler muito sobre o assunto. Organizar as idéias. Pensar em tudo que já vivemos e em tudo que nunca mais queremos viver. Enxergar o sistema por fora e por dentro. Se formos capazes.

Tenho a sensação de que estamos diante da maior montanha a ser vencida: a da Corrupção. E tenho a sensação de que esta é uma grande oportunidade. Me arrepio ao pensar que agora é a hora em que podemos, de fato, mudar nossas vidas.

vemprajanela

“Nada é tão poderoso no mundo como uma ideia cuja oportunidade chegou.”

Victor Hugo

ps. não falo de corrupção me referindo a um partido específico como a mídia o faz. Recentemente perdi minha candidata num incidente infeliciano e continuo sem enxergar renovação em quem se diz merecedor de tal título.

Saudade tem gosto de arroz doce

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Quando eu era bem pequena, sempre que morria um dos meus coelhinhos, ou hamsters, ou patinhos, cachorrinhos ou passarinhos, eu chorava e sofria muito. Um dia, uma ideia de conforto me ocorreu: Quando morrer, vou reencontrá-los.

Nunca fui religiosa no sentido estrito da palavra. Não vejo em nenhuma religião a resposta para minhas dúvidas. E desde sempre desconfiei de pessoas que falavam em nome de Deus. O que é Deus para você?

Deus, para mim, era tudo maior que eu. Era a água corrente do rio, era o sol nascendo no frio, o choque das ondas do mar e o caminho organizado das formiguinhas. Era. Hoje é mais que isso. Deus está em tudo que se cria, em tudo que se revela pela ciência, pelos grandes esforços e pela vontade de superação.

Mas morrer não fazia parte da minha compreensão de Deus. Morrer, para mim, era uma falha da criação. Eu tinha pavor da morte. A minha, e a de pessoas que amava.

Um dia me falaram que se ninguém morresse, ninguém mais cuidaria de ser atencioso com o outro. Entendi a reflexão, mas discordei. Sempre gostei da minha mãe. Nunca deixaria de ser carinhosa com ela se ela fosse imortal.

Então veio o raciocínio da renovação, dos ciclos e das superpopulações. De fato, se ninguém morresse, o planeta não comportaria mais ninguém.

Além disso, um outro raciocínio: Sabendo-nos imortais, o que faríamos com os nossos corpos? Comeríamos chocolate até o limite de produção de Cacau no mundo. Devastaríamos a Terra com nossos prazeres. Perderíamos o controle no volante. Viveríamos uma vida de brutos.

A morte faz parte da vida. Entendi.

Mesmo assim, ainda tinha minhas preferências.

Queria que minha família ficasse sempre viva. Queria que grandes malvados partissem mais rápido. Essa seria uma forma de julgamento: Se morreu, é porque mereceu.

Mas não adianta. Todos nascemos. Todos morremos. É a igualdade universal.

Parei de pensar em mudar a morte e passei a me concentrar em mudar o depois da morte. Ou, pelo menos, descobri-lo. Poderia eu encontrar o Joca, meu pássaro preto, o Google, meu peixe suicida, a Suzy, minha primeira cachorrinha? Ou, mais além, buscando os seres humanos, que tem mais livre arbítrio, poderia encontrar meu avô Zico que nunca conheci? Poderia rever o jardineiro da escola? E encontraria também um tempinho para falar com a Gabi, minha ex-colega de Direito?

Pessoas queridas tinham que se reencontrar. E se eu nunca mais pudesse ver meu pai? E se minha mãe não me encontrasse no além? Todos os nossos diálogos, nossas brincadeiras e nosso amor ficariam perdidos?

Tudo que construímos passa?

Se hoje eu amo escrever, depois vou parar de gostar e todos os idiomas que estudei serão esquecidos para sempre?

Não me parece lógico isso. E tudo que Deus, ou a ciência me mostram é que existe uma lógica nesta vida. Mesmo que a gente prefira mudar um pouco essa lógica.

Eu tenho grandes sentimentos, alimentados com muito afeto por anos e anos. Não posso perdê-los.

Eu tenho duas avós. Que amo muito, muito mesmo. Hoje faleceu uma delas. Aos 86 anos, com uma vida de sorrisos, pasteizinhos e domingos felizes. Ela fazia o melhor arroz doce diet do mundo e esteve em todas as horas importantes da minha vida. Ela se foi rodeada de afeto, de gente que não queria que ela fosse, mas foi, para dar lugar pra uma outra pessoa neste mundo superlotado.

Por ironia do destino, minha avó completaria hoje 65 anos de casada com o vovô Zico. Hoje, no dia dos namorados, eu tenho certeza, que quando ela aparecer lá, ele vai cruzar o salão, com o sorriso que todos da minha família herdaram, e vai estender-lhe a mão, para comemorar o tão esperado reencontro.

Vovó, não acredito que tenha ido. Não queria estar longe agora. Como nos encontraremos de novo? Quero ser da sua família outra vez!

Eu tenho minhas dúvidas se de lá onde ela está, pode ter acesso a algum texto ou blog. Ou à alguma música ou poesia. Mas deixo registrada a minha vontade. E faço um pedido de coração: Dê um beijo no vovô por mim.

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12 de junho

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Hoje é dia dos namorados no Brasil e não aqui. Na França, dia dos namorados é no 14 de fevereiro e eu tenho a impressão que eles estão tentando criar esse hábito que parece um pouco americanizado.
Foi no dia dos namorados do Brasil que minha avó Marietta se casou com meu avô Zico. E ela sempre se lembra disso!
Meu avô era daqueles homens especiais, que encantavam todo mundo! Dizem as testemunhas que quando ele chegava em uma festa, atravessava o baile inteiro para cumprimentar primeiro a minha avó e depois os demais. A vida desses dois é uma história riquíssima de luta, companheirismo e muito amor.
Minha avó Lygia e meu avô Branco também são uma belezura! Ele a conheceu no ônibus. E, anos depois, eu fui conhecer o meu namorado no avião. Ou seja, “apesar de termos feito tudo, tudo, tudo o que fizemos, nós ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”.

Em homenagem ao dia dos namorados no Brasil, eu quero falar sobre o meu querido francês que me fez mudar para cá.
Como não vou começar a contar fofoca ou indelicadezas no blog, vou falar apenas do que é publicamente fofo:
1) Tem duas semanas que ele é um doutor! E ele ainda não ficou insuportável com esse título, acho que vamos conseguir nos dar bem com isso!
2) Ele aceitou adotar um cachorro em meados do segundo semestre. E já temos um relacionamento aberto com um gato.
3) Ele diminuiu a quantidade de carne que come, para me fazer mais tranquila! Mas ainda pode diminuir mais.
4) Ele aceitou pintar a parede de cor mais clara assim que fizer mais calor (já está fazendo calor!)
5) Ele gosta dos meus amigos, que, obviamente, são impossíveis de não serem gostados, mas de qualquer forma, tratarei como um ponto positivo.
6) Ele tem uma barba cheia e bonita. Só falta aprender a dar umas aparadinhas com o Rodolfo da banda Nadia e Rodolfo.
7) Ele me deixa cortar o cabelo dele!!! (mil pontos para ele!)
8) Eu gosto de 97% dos amigos dele!
9) Ele fala “Na Brasil”!
10) Ele gosta de mim!

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Este post é só para deixar claro que eu gosto muuuuuuito da França!
E a França com arroz+feijão+farofa como fizemos hoje, fica bem mais próxima da perfeição!!!

Bisous, mon amour! ❤

O cachorro compositor

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Na sala de entrada da nossa casa tem um quadro negro. No quadro negro tem um desenho. No desenho tem uma mensagem e na mensagem, uma saudade: Peter.
O quadro negro foi comprado com o objetivo de registrar quase que diariamente, frases de grandes escritores brasileiros, franceses e internacionais e deixar direcionado para a janela que dá para a faculdade. Eu esperava que, com o tempo, os alunos que tem aula naquele canto notassem que havia um quadro negro com mensagens de otimismo para eles todos os dias. Mas os meus cálculos deram errado. A luminosidade mais escura da nossa sala em contraste com a luz do pequeno jardim que nos separa da universidade e uma distância razoável impedem que qualquer estudante possa investigar o que se passa aqui dentro de casa. Então, nada de frases para os acadêmicos, resolvi fazer arte pra mim mesma.
Um dia, ouvindo Adele, aquela cantora inglesa que nasceu com a voz que tanta cantora devia ter nascido, tive a nítida sensação de que meu cachorro havia composto a música “Don’t you remember”. A música começa assim “Quando irei te ver novamente? Você não deixou nenhum adeus”… E, claro, no refrão, o cachorro diz “Você não se lembra da razão pela qual você me amava?”(eu acho que a tradução tira um pouco da força da letra, mas tudo bem, assim como o parênteses tirou completamente a força do parágrafo…).

Peter compôs “Dont you remember” e de repente me bateu uma saudade daquele amigo. Amigo que não deixa ninguém me incomodar quando estou deitada na grama da praça. Que sempre dorme esquentando meus pés. Sempre disposto a me fazer companhia. Sempre exigente com a comida e limpeza de seu “banheiro”. Que saudade desse pedaço de felicidade que não tem raça definida e um mamilo a menos. Peguei o giz e esbocei Peter como pude no quadro. Incluí o refrão da música.

Ninguém percebeu minha masterpiece na parede… nem Alexis, que escreveu no mesmo quadro, quase por cima do desenho, uma lista de coisas a fazer… Assim, do lado da minha declaração de amor.

Mas quem se importa com amor por animais? Poucos.

Em um domingo desses assistimos um documentário sobre as abelhas. Um documentário extremamente tocante sobre um dos animais mais trabalhadores do mundo e mais mal tratados também (qualquer semelhança com professores é mera coincidência). As abelhas estão adoecendo no mundo inteiro por causa da industrialização mal feita e mal cuidada do mel. O documentário mostra o pior e o melhor dos mundos, dizendo que há ainda solução nos pequenos apicultores mais cautelosos de não esmagarem ou intoxicarem todas as abelhas na produção. Mas estes homens são pouco respeitados no comércio e estão em falta.

E quem se importa com respeito aos homens? Poucos.

O mundo anda estranho… Pessoas cortando relações por tão pouco. E gente tão longe que faz tanta falta…
Enquanto eu sinto saudade do meu cachorro, minha amiga siriana não pode reencontrar a própria família.
Ela fugiu com marido e filha para a França, mas seus pais e irmã ficaram lá, numa cidade destruída.

Na China há regiões em que não há mais abelhas. Elas morreram todas. Os humanos é que fazem a polinização das flores. E, se pararem de trabalhar, os outros humanos não terão frutos.

Mas quem se importa com abelhas? Quem se importa com meu cachorro? Quem se importa em ser humano?

Eu só te digo uma coisa, meu cachorro compôs uma música, cantada pela Adele. E ele tem toda razão. As pessoas do mundo não encontram, sequer, tempo de dizer adeus.

Quando digo que não gosto de comer carne…

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Como eu me enxergo:

Como os franceses me enxergam:

Como eu realmente sou:
pintinho

Três estudantes, um violão e o luar

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Em junho de 2011 eu recebi uma notícia que mudou a minha vida. Depois de muita luta, muito esforço e muitos rascunhos, finalmente, eu me tornava advogada. Foi a partir daí que pude fazer uma viagem que me possibilitou conhecer Alexis etc!
Tenho um blog inteiro que fala dessa experiência com o Direito e tenho um milhão de casos para contar que talvez um dia se tornem um livro. Durante minha vida de estagiária, adotei um cachorro enquanto ia para a Justiça Federal, fiz amizades no fórum, caí da escada do tribunal, corri atrás de vários ônibus, tombei o processo trabalhista no meio da rua, conheci juízes e advogados de bem, também conheci um mundo podre e corrupto, mas, principalmente, conheci outros estudantes de Direito que marcaram minha vida para sempre.

Hoje vou falar de dois: Jorge e Rafa. Meus colegas de estágio no último escritório em que estagiei e após, advoguei em Belo Horizonte. Quando entrei, Jorge, além de um colega de estágio, era também encarregado de fazer a comunicação (internacional) do escritório. Entrei para ajudá-lo com meu conhecimento de publicitária. Achei que teríamos um problema de sintonia, já que toda vez que chega um profissional mais capacitado para “mostrar” para o outro como trabalhar, isso gera um ciúme muito grande e um ambiente horrível. Foi uma surpresa como Jorge sempre foi receptivo! E, ao contrário do que imaginávamos, foi ele que me mostrou como trabalhar! E como trabalhar com gosto, com bom-humor e criatividade!
Eu já tinha um Jorge Amado na minha vida (olha o trocadilho!): Jorge, meu brother e roommate do Canadá (que saudade!!!). O Jorge do escritório, no entanto, em questão de dias se tornou um novo melhor amigo.

Um novo melhor amigo até que chegou o Rafa. Rafael Penido, com o mesmo sobrenome do meu pediatra (de quando eu era pequena, dã), entrou no lugar de um outro amigo que havia partido e deixado saudades. Seria fácil substituí-lo?! Não. Mas um belo dia Penido almoçou comigo e depois me entregou uma declaração por escrito dizendo que eu era uma das pessoas mais legais que ele tinha conhecido. Como não se derreter?
Passamos a almoçar juntos com a galera, enquanto o Jorge sempre almoçava em casa, o folgadão!

O que me incomodava no Rafa era que ele nunca comia verduras e mesmo assim mantinha um físico de atleta. Como pode? Eu me indignava!

Eu e Jorge éramos meio insones nessa época e compartilhávamos o sonho de montar um escritório 24h, visto que nosso horário mais produtivo era no fim do dia e durante a noite. Alguns planos foram feitos nesse sentido, mas nada vingou. O Rafa era um cara mais diurno, e a gente se perguntava se ele toparia trabalhar a noite inteira ou se seria o responsável pelo trabalho no horário comercial!

O trabalho foi endurecendo e nossos contatos no escritório foram minguando.
Eu e Jorge ainda tínhamos alguma conversa durante as noites em que levávamos trabalho pra casa. O Rafael não. Sempre foi o mais centrado. O estagiário ideal: educado, disciplinado, concentrado, estudioso e querido por todos. Esse rapaz tinha futuro!

Jorge tinha suas dúvidas. Ele era uma pilha de ideias preso numa estrutura rígida de escritório. A gente sentia que alguma coisa ali estava prestes a explodir.

Um dia Jorge encontrou outra oportunidade e saiu do escritório. Deixou cartinha para quase todo mundo agradecendo a atenção.

Fomos despedir no bar do lado e lá ele revelou tanta coisa sobre sua vida que deu ainda mais sentido para sua postura, sua criatividade, sua simpatia e também para sua insônia.

Uma semana depois, marcamos de encontrar na tal feirinha da Savassi. Um lugar onde todos os advogados da região se encontram na quinta-feira à noite. Naquele dia, estávamos entre vários. Foram todos indo embora até que sobramos eu, Rafa e Jorge.

De lá, fomos para o Jack, outro bar-cliché de Belo Horizonte, mas decidimos ter uma noite diferente e experimentamos todos os drinks com nomes exóticos da casa. Foi divertido, mas meio caro. Coisa pra fazer uma vez na vida. Se você é estagiário, nem deveria fazer.

Eram três horas da manhã e achamos melhor dar uma passadinha na praça do Papa, que fica num ponto alto de Belo Horizonte para, justamente, ver o horizonte. Jorge tinha um violão no carro. Nada mais oportuno. Passamos o resto da noite cantando, de Ana Julia à Save Tonight! Uma menina veio sentar do lado do Rafa. Ele achou que ela estava interessada, até que veio o namorado dela e sentou do lado também e por um tempo, tínhamos audiência para nosso coral.

Quando eles foram embora, de novo, sobramos nós três. E um gramado verdinho, inclinado na direção da Avenida Afonso Pena, uma das mais importantes da cidade.

Jorge levantou, encostou o violão e disse “Vou fazer uma coisa, que se eu não fizer agora, não vou fazer nunca mais”. Eu e Rafa trememos. Ele se deitou no chão, dobrou os braços e se lançou. Rolou a praça do papa gritando!

Rimos muito!
Deitei no chão e fiz o mesmo. Entrou grama até no meu umbigo.

Rafa, de terno, todo arrumadinho, se pôs no chão e foi. Acontece que ele se direcionou para uma parte do gramado que acabava num degrau um tanto quanto altinho. Ele ia cair de cabeça no concreto. A gente tentava avisar, mas quem disse que conseguíamos interromper o riso para falar. Ele finalmente abriu os braços e parou de rolar, segundos antes de cair.

Achamos um coco no chão e decidimos jogar futebol. Por que não?! Era uma quinta-feira 4h da manhã. A gente teria que estar no escritório às 9h. Nada mais apropriado. O problema foi que Jorge estava jogando bola com o violão no braço e quando fui dar um chapéu, o braço do violão veio bem no meu olho. Parei. Voltei pra casa.

No dia seguinte, quando cheguei no escritório, Rafa já tinha contado tudo pra todo mundo e a coordenadora trabalhista disse que morria de raiva da gente não ter chamado ela pra rolar conosco!

Sabe, esse foi o tipo de evento que eu vou me lembrar naqueles segundos em que toda a vida passa diante dos olhos antes de morrer. Eu acho que foi uma das melhores noites da minha vida de estagiária. Quiçá da minha vida!

Duas semanas depois, fui a uma dentista. Ao me posicionar em sua cadeira, ela fez um comentário “Meu Deus, que olho roxo é esse!”. Eu ri. E depois de ver que ela esperava a resposta, fiquei sem graça. Como explicar “bati o olho num violão jogando bola de madrugada”?

Um ano depois, Jorge quis marcar um reencontro pra gente lembrar a noite na praça. Mas a vida já não estava do mesmo jeito. Eu estava envolvida na ida pra França, Rafa no trabalho e o próprio Jorge no fim da faculdade.

Depois que o escritório se dividiu em dois, boa parte dos amigos partiram (Luis, Luísa, Bruno, Regina e o Juan da Colômbia…). Passei a almoçar sozinha com o Rafa, que nunca comia salada. A gente sempre teve assunto, mesmo com anos de diferença, e encontrando todo dia.
No meu último dia de trabalho, deixei um recado no computador dele antes de sair e fechar a porta do escritório pela última vez: “Coma verduras!”. Até hoje, ele se lembra disso, mas ainda não come.

Outro dia fiquei sabendo que Jorge se formou, passou na OAB e foi advogar como tributarista num grande escritório de BH. Foi também outro dia que fiquei sabendo que o Rafa havia perdido o pai. Duas situações distintas, mas que mereciam a minha proximidade. Como amiga. Como cúmplice.

É difícil estar sempre tão longe. Tão impotente diante de tanta coisa. Minha única arma até agora é a escrita.
Por isso, no improviso do papel virtual, eu escrevo, em forma de pedido, um convite: Venham me ver. Quando quiserem. Como quiserem. Assim que quiserem. Existe um morro gramado aqui perto. Não esqueçam o violão.

PracadoPapa